Querida vó Moza!
Partiste há uns meses no final de um ano do qual muitos reclamaram. Mal sabiam eles…mal sabia eu… o que estava para vir. Será que alguém ainda se lembra dos planos de construção de um muro nos EUA que, ainda não estando pronto, já divide famílias e opiniões?; será que alguém se lembra que na Nova Zelândia – aquele país quase perfeito, terra de ovelhas e paisagens idílicas – foi abalado por atentados terroristas em Christchurch?; em 2019 o mundo ficou a conhecer a jovem ativista Greta Thunberg e a luta pela sobrevivência do planeta Terra foi trazida para a linha da frente. Quem se lembra dela?; alguém ainda se lembra que o Brexit avançou e os ingleses se divorciaram da União Europeia?; alguém recorda as manifestações em Hong Kong, na Bolívia, no Chile e na Venezuela?; quem ainda se lembra que não haverá nova temporada da Guerra dos Tronos?
Vendo bem as coisas, foi um ano bom, apesar de nos teres deixado. Éramos (quase) felizes e inocentes na nossa ignorância sobre aquilo que 2020 nos reservava. Do muro e outras políticas polémicas pouco se tem ouvido falar, as atenções viraram-se para a China em janeiro e daí até hoje o vírus espalhou-se sem piedade pelo mundo, invadiu os media e as nossas casas. Foste poupada a toda esta confusão mundial e pudeste, finalmente, desligar a confusão que ia na tua cabeça e descansar o teu corpo cansado de todos os desgostos, batalhas e maleitas que viveste.
Os que cá ficaram também não têm tido grande descanso. Este vírus tem tido a capacidade de unir e afastar, derrubar e erguer…num turbilhão de emoções, esperança misturada com angústia, perda e superação.
Acho que é oficial! 100 dias de confinamento começam a afetar-me o cérebro.
Deixa-me contar-te como tem sido a nossa vida. Num dia típico de “quarentena” acordo às 6h30 e procuro fazer 1h de caminhada no tapete entre as 7h e as 8h. Comprámos o aparelho ao cabo de umas semanas em casa porque deixei de frequentar o ginásio do condomínio (por não achar que fosse seguro) ao mesmo tempo que me tornei exímia padeira e pasteleira. (Algum dia imaginaste a tua neta tão dedicada à cozinha?) Entre panquecas, bolos de laranja, pães de banana, rabanadas, almoços e jantares para toda a família e pão caseiro, a balança começou a reclamar e teve que ser! Estava na hora de retomar algumas das rotinas pré #stayathome.
Das 8h até às 15h é um non-stop de tarefas como qualquer dona de casa que tem os filhos em online learning: a casa para arrumar (depois de dispensar temporariamente a empregada por, mais uma vez, não achar seguro), o almoço para fazer, roupas para passar, etc. Nos dias em que não me dou por vencida no sofá, aproveito para ler um pouco, corro os olhos pelas redes sociais, pela televisão ou então faço dot pointing. Os fins de tarde têm sido preenchidos com um pouco de ténis improvisado com a Catarina, uns torneios de basquetebol com o teu neto adotado e o André (só para que conste, tenho ganho quase todos!), piscina e umas voltas de bicicleta. Há uns bons anos aprendi a andar de bicicleta já adulta e mãe de um filho. Lembraste? O maridão é que ensinou, assim como ensinou o sogro, a sogra, os filhos e as filhas. Também me ensinou mas aqui a trenga tem medo de atropelar alguém na rua e falta-lhe coragem e confiança. Ultimamente voltei aos treinos e posso-te dizer que, graças ao meu “mentor”😉, me sinto quase pronta para enfrentar o mundo…talvez não o mundo caótico de Jacarta mas num outro destino mais calmo e seguro, onde existam passeios ou vias para velocípedes em vez de fossas a céu aberto. Isto para te dizer que me tenho tentado manter ativa e sei bem que é isso que me tem ajudado ao longo destes meses.
Em fevereiro comecei a mentalizar-me para as semanas que aí vinham. O mundo estava em reboliço. A China e outros países asiáticos estavam a combater o maldito vírus e era apenas umas questão de dias até chegar aqui. As minhas amigas em Pequim saíram da China por alturas do Ano Novo Chinês e davam conta de uma situação surreal. As três saíram de férias e passaram-se semanas (meses) até regressarem. Para trás deixaram empregos, casa, animais de estimação… vidas que ficaram em standby. Por aqui ainda tivemos tempo de ir conhecer mais duas ilhas indonésias em fevereiro e fomos até à costa sul de Java com uns amigos franceses mesmo no início de março. Cheios de cuidados, com as máscaras e o gel atrás de nós e a certeza de que o mundo, tal como o conhecíamos, estava a desaparecer. A 14 de março a escola avisa que vai fechar portas e dar início o online learning…um processo para o qual professores, pais e alunos já estavam devidamente alertados. Nas semanas anteriores tínhamos tido sessões de esclarecimento e recebemos vários e-mails com toda a informação. Dia 16 de março começou uma nova fase.
Portugal teve o seu primeiro caso confirmado no mesmo dia que a Indonésia e durante algum tempo confesso que fui comparando os valores apresentados por ambos…até que percebi que as duas realidades estavam tão longe que não fazia sentido continuar com esse exercício diário. Só a capital Jacarta tem mais habitantes do que Portugal! E se formos a comparar o modo de vida indonésio, a cultura de rua, as famílias numerosas que coabitam em 50 m², os cuidados médicos precários…não há comparação possível e justa.
A certa altura ponderámos se deveríamos regressar a Portugal ou ficar cá. A esmagadora maioria dos nossos amigos saiu de cá; na escola os colegas japoneses, coreanos, tailandeses, filipinos, chineses, malaios…saíram quase todos. Temos amigos sul-africanos, ingleses, portugueses, australianos, europeus que também saíram. De repente percebemos que fomos dos poucos que resolveram ficar e resta aquela dúvida (lá bem escondida no subconsciente) se terá sido a decisão acertada mas, acima de tudo, a certeza de que a família devia ficar junta.
Em Portugal viveram-se semanas de confinamento rigoroso ao passo que aqui a palavra “rigor” nunca se aplicou. Basta ver quando vamos ao supermercado e os seguranças nos tiram a temperatura e surgem valores disparatados como 32°C ou até mesmo à entrada do nosso condomínio quando os seguranças fazem spray às rodas das motas que entram no espaço…mas só fazem spray de um lado e do outro não! Deve ser porque eles sabem que o vírus só circula pela direita e não pela esquerda. 😒😒 Enfim… andam a atirar-nos areia prós olhinhos…
Em abril, quando toda a gente já andava a puxar os cabelos por estar há tanto tempo enfiada em casa, eu ainda mantinha a minha serenidade e convencia-me que o pior estava a passar e em breve íamos sair e viver um “novo normal”. Sim, de máscara e com distanciamento físico mas íamos poder sair, ir à praia, passear na natureza, dar longas caminhadas, sentir a brisa…beber um café numa esplanada e pedir uma cerveja e uns caracóis. Sim…acredita que eu já nem sonhava com as praias paradisíacas da Indonésia mas com a ventosa praia do Senhor da Pedra e as suas águas geladas. Depois chegou maio e trouxe com ele todo um esforço extra de proporcionar à mais nova um aniversário em confinamento que fosse o mais feliz possível. É impressionante como as crianças são as mais resilientes e nos dão lições de vida do alto dos seus 7 anos. À nossa volta juntaram-se amigos e família que fizeram do longe perto com a sua amizade e amor e aos quais estarei para sempre grata.
maio veio e foi e os números começaram a diminuir em Portugal mas aqui não. O chamado “desconfinamento” foi adiado por cá durante algumas semanas mas neste momento o “novo normal” começa a instalar-se, assim como muitas dúvidas se isto não vai dar para o torto. Estará a Indonésia preparada para as novas regras, estarão os indonésios preparados para as seguir, estarão os hospitais melhor equipados para os novos doentes, como estará a economia daqui a uns meses? O país precisa desesperadamente dos turistas que todos os anos deixam aqui milhões e precisa de retomar a vida para que a pobreza que já existe não se agudize ainda mais.
Neste momento estamos numa nova fase, de planeamento de um futuro que se quer próximo em Portugal, de férias, a matar saudades da família (sem ti), amigos e comidinha…umas semanas que serão muito diferentes do nosso habitual mas que, talvez por isso mesmo, sejam muito desejadas e necessárias. Vamos ver como corre o verão e o que ainda nos reserva 2020…
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